quarta-feira, 20 de outubro de 2010

1808 - O chefe de Polícia


"Uma bomba populacional abalou o Rio de Janeiro nos 13 anos que a corte portuguesa esteve no Brasil. O número de habitantes, que era de 60.000 em 1808, tinha dobrado em 1821. Só São Paulo, transformada na maior metrópole da América Latina na fase da industrialização, na primeira metade do século XX, veria um crescimento tão acelerado. No caso do Rio de Janeiro, havia um agravante: metade da população era escrava. Pode-se imaginar o que foi isso numa cidade que já em 1808 não tinha espaço, infra-estrutura nem serviços para receber os novos moradores que chegavam de Lisboa.
A criminalidade atingiu índices altíssimos. Roubos e assassinatos aconteciam a todo momento. No porto, navios eram alvos de pirataria. Gangues de arruaceiros percorriam as ruas atacando as pessoas a golpes de faca e estilete. Oficialmente proibidos, a prostituição e o jogo eram praticados à luz do dia. (...)
A tarefa de colocar alguma ordem no caos foi confiada por D. João ao advogado Paulo Fernandes Viana. Desembargador e ouvidor da corte, nascido no Rio de Janeiro e formado pela Universidade de Coimbra, Viana foi nomeado intendente geral da polícia pelo alvará de 10 de maio de 1808, cargo que ocupou até 1821, o ano de sua morte. Tinha funções equivalentes ao que seria hoje a soma de um prefeito com um secretário de Segurança Pública. Mais do que isso, era "um agente civilizador" dos costumes no Rio de Janeiro. Cabia a ele transformar a vila colonial, provinciana, inculta, suja e perigosa em algo mais parecido com uma capital européia, digna de sediar a monarquia portuguesa. Sua missão incluía aterrar pântanos, organizar o abastecimento de água e comida e a coleta de lixo e esgoto, calçar e iluminar as ruas usando lampiões a óleo de baleia, construir estradas, pontes, aquedutos, fontes, passeios e praças públicas. Ficou também sob sua responsabilidade policiar as ruas, expedir passaportes, vigiar os estrangeiros, fiscalizar as condições sanitárias dos depósitos de escravos e providenciar moradia para os novos habitantes que a cidade recebeu com a chegada da corte.
(...)
Viana era a favor da escravidão, mas achava que não pegava bem tê-la exposta publicamente numa cidade habitada por uma corte européia. Malvestidos, os negros costumavam se reunir nas ruas e praças aos domingos e feriados para jogar, lutar capoeira e batucar. Quando cometiam algum delito, sues donos tinham a prerrogativa de mandar açoita-los em praça pública. Relatório do intendente de 1821 revela que um terço de todas as prisões de escravos no período estavam relacionadas a "crimes contra a ordem pública", registrados nos boletins policias sob o nome genérico de "desordens". Nessa categoria incluíam-se brigas, bebedeiras, jogos proibidos - como capoeira - e agressões físicas. Pequenos furtos e porte de armas, como navalhas, eram reprimidos de forma severa. Um escravo recebia de duzentos a trezentos açoites por ser encontrado com navalhas ou lutando capoeira. (...)
Os negros poderiam ser presos apenas por assoviarem o ritmo da capoeira ou por usarem casquete com fitas amarelas e encarnadas - símbolo dos lutadores de capoeiras - ou ainda por carregarem instrumentos musicais utilizados nesses encontros. Registro policial de 15 de abril de 1818 revela que "José Rebolo, escravo de Alexandre Pinheiro, foi preso por usar um boné com fitas amarelas e vermelhas". Tinha em seu poder uma faca de ponta. A punição: trezentos açoites e três meses de prisão!
(...)
O intendente reclamava da falta de recursos para combater o crime e cumprir todas as grandes tarefas que lhe estavam confiadas. Sua polícia, que deveria ter 218 homens, tinha só 75. Seu regulamento dizia que os vigilantes tinham de "se ocultar em sítios mais reservados, e no maior silêncio, para poderem escutar qualquer bulha ou motim e aparecerem repentinamente sobre o lugar da desordem". Devido a essa forma sorrateira de atuação, os policiais de Viana receberam o apelido de "morcegos". 
Os agentes de Viana eram implacáveis e truculentos. O mais famoso deles foi o major Miguel Nunes Vidigal. Segundo-comandante da nova Guarda Real, Vidigal tornou-se o terror da malandragem carioca. Ficava à espreita nas esquinas ou aparecia de repente nas rodas de capoeira ou nos batuques em que os escravos se confraternizavam bebendo cachaça até tarde da noite. Sem se importar com qualquer procedimento legal, mandava que seus soldados prendessem e espancassem qualquer participante desse tipo de atividade - fosse um delinquente ou apenas um cidadão comum que estivesse se divertindo. Em lugar do sabre militar, os soldados de Vidigal usavam um chicote de haste longa e pesada, com tiras de couro cru nas pontas. O major também comandou pessoalmente vários assaltos a quilombos montados por escravos fugitivos nas florestas ao redor do Rio de Janeiro. Em recompensa pelos seus serviços, Vidigal recebeu de presente dos monges beneditinos, em 1820, um terreno ao pé do Morro Dois Irmãos. Invadido por barracos a partir de 1940, o terreno está hoje ocupado pela Favela do Vidigal, de onde se tem uma vista privilegiada das praias de Ipanema e do Leblon."

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Trechos do livro "1808" de Laurentino Gomes, Ed. Planeta, ISBN 978-85-7665-320-2

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